sábado, 25 de abril de 2009

Marcas de liberdade ou libertinagem?! – Como era antes…

Muito me foi contado pela vóz dos meus avós, do meu pai e de alguns idosos mais esclarecidos da minha aldeia acerca do 25 de Abril, estabelecendo sempre um paralelismo com a sociedade portuguesa contemporânea.
Ainda agora, não raras vezes, me passa pela cabeça uma pequena história que o meu avô Francisco me contava nas longas tardes e tardinhas que ficava a ouvi-lo junto ao aconchego da lareira, sempre bem icendiada por lume de pinho e cepos rugosos de medronheiro. Nós ali ficavamos acanhados em pequenos e rasteiros bancos de madeira de construção artesanal, com as chouricas penduradas num pau a tremelicar devido o calor que exalava da fogueira.
Sabes, noutros tempos apareciam coisas às pessoas que andavam por aí nas ruas e acolá, no cruzamento da Ramadas, cheguei a ver umas luzes miúdas a dançarem para cima e para baixo que pareciam umas centilhas. Eram as bruxas – dizia em tom exclamativo o meu avô.
O toque dos sinos marcava a transição para a hora da penumbra, do medo dos seres do além e das almas penadas. Não havia luz e o medo dominava tanto o feroz vavador de enxada, como o lenhador mais escorreito ou o homem mais ruim. A era das trevas do tempo moderno vivia-se no mundo rural, o mais profundo de todos os mundos, onde a estrada mais próxima para a cidade se apanhava depois de duas horas de caminho a pé, cortando bosques e campos de milho, vales profundos, moinhos e combaros esguios e altos.

Novamente o repenicar dos sinos mal se erguia o sol a raiar nas cabeçeiras dos vales trazia a inércia da vida e mais um dia longo, igual a todos os outros, de trabalho nos campos e a tratar do gado. Era o sustento da família e na aldeia, só a resina, o volfrânio na terra vizinha, já a caminho da serra, dáva trabalho aos homens. Outros ainda foram fazer umas jornadas na construção da lagoa comprida. Abalavam todas as segundas de madrugada com a saca das batatas nas costas calejadas e regressavam no sábado com uns tostões para comprar uma broa de milho e duas ou três sardinhas, proporcionalmente repartidas pelos muitos filhos em roda da mesa.
As couves, os figos e as miunças vendiam-se na praça de Loriga, onde o dinheiro ganho nos texteis permitiam uma vida um pouco mais citadina.
Muito me ri-o com a história que vos passo a contar. Certa vez o meu pai e uma prima, na altura os dois com perto de doze anos, sairam de casa por volta das três horas da manhã em direcção a Loriga, onde vendiam os produtos da terra atafulhados em duas grandes sestas de vimém entrelaçado, minuciosamente construídas pelo canastreiro da aldeia. O peso era grande e a distância também, contudo só tinham destinado uma paragem a meio do caminho para descansar o pescoço. Eram crianças com força de adultos…
Percorriam já uns quilómetros depois da aldeia deram conta que à sua frente iam uns primos, que iam rivalizar com eles na venda das colheitas. Se chegassem primeiro iriam ocupar o melhor lugar. Que deu na cabeça ao meu pai: - o melhor é pousarmos isto e arranjar maneira de os espantar. Que ideia vislumbrante, a minha prima levava um xaile preto feito em borboto, ou seja com um tecido cheio de pequenas aberturas e buracos largos e o meu pai aluniava o caminho com uma lanterna de carbureto. Envolveram o xaile sobre a lanterna, donde saiam espaçados feixes de luz muito forte e aproximaram-se dos outros que ao veram aquilo pousaram as cargas e desataram a correr monte abaixo até a aldeia, gritando “Santo nome de Jesus, Credo”, “Abrenuncia”, vimos uma alma penada na lomba e corria para nós. Durante semanas o medo voltou para ficar e atormentar o povo e a alma penada foi durante semanas o tema de conversa no final da missa, nas orações em familia e nos trabalhos do campo.
Aos domingos agradecia-se esta vida na missa e pela tarde jogava-se à pucarinha nas praças da aldeia, onde se juntavam as familias e os amigos, e os homens equipados pouco a rigor corriam no campo da bola, aqui e além com ossaduras de afloramentos de granito que queimavam as pernas nas quedas mais aparatosas.
Na escola, os meninos estavam separados das meninas, mas ambos respeitavam os regentes, que ainda utilizavam a menina de cinco olhos para quem não fazia os deveres e se portava mal.
Assim se vivia na aldeia, mais tarde rasgaram a estrada – que ainda hoje permanece com o seu trajecto e piso original, ehehehhe – e só passava um carro de longe em longe. Toda a gente saía à rua e os pequenos agarravam-se à traseira dos “calhambeques”para impedir que patinasse na curva da escola – conta o meu pai.
Havia medo dos bufos que ainda levaram algumas pessoas da aldeia a deporem na GNR, onde o meu pai também foi “apertado” em virtude de se encontrar a conspirar em grupo contra a amada pátria numa rua escura da aldeia. Lá tive que pagar uns reis para não lhe baterem – rematava o meu avô.
Vivia-se num mundo calado pelo silêncio do medo. Portugal era o país dos xailes pretos, do luto, do temor e da desgraça da guerra do ultramar. Não havia ideia de outro mundo e tudo se cingia ao que se via no horizonte dos olhos. Os dias eram longos e sucediam-se sempre iguais.

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