sábado, 28 de fevereiro de 2009

Perigos cruzados: camionistas e pescadores

Ontem quando carreguei ao de leve no comando da caixa mágica acabei por ficar apegado a um programa que passava num tal canal sobre a vida de pescador. Comparavam-se inclusivamente as diversas práticas de pesca que se praticam pelos quatro (porque não podem ser cinco? Eu pensei que o mundo só tinha dois, como uma bola de futebol: interior e exterior) cantos do mundo, desde pescas rudimentares até aos imponentes navios de alto mar. Quer num caso quer noutro vivem-se perigos constantes, a morte cheira o descuido e o mínimo pode ceifar vidas.
Em terra as familias vivem o dia-a-dia em sobressalto constante pois sabem de antemão que a profissão dos seus desafia limites e perigos, não só por descuidos mas por imposição da mãe maior, a Natureza. Por vezes zanga-se e lança no mar o seu descontentamento; ferozes e velozes turbilhões de ar, medonhas tempestades, restando esperar pela sua calmia agarrados aos terços e aos santos a quem na hora se lançam todas as esperanças. É uma vida assaz dura.
Ora isto transportou-me a fazer uma certa analogia com a vida de camionista (mais particularmente Motorista Tir). Afiguram-se algumas semelhanças no cruzar destas vidas: perigo, saudade, orgulho, ansia de voltar a casa, de abraçar os seus mais queridos.
Afinal ambos correm perigos diários, um no mar, outro no asfalto.
O mar por vezes é cruel e a sua bravura pode tirar vidas aos que aí ganham o seu sustento, mas nem o perigo lhe dá direito a um sudsídio de risco. No asfalto mora a imprevisibilidade, a interrogação do perigo e todo o cuidado é pouco. Reina a imcompreensão aos pesados, mastodontes de muitos metros e grande tonelagem a estorvar nas subidas mais vigorosas. Provavelmente aí desse lado do ecrã haverá muito boa gente que não faz ideia que um camião TIR pode ascender ao peso bruto de 40 toneladas.
No mar vive-se num barco onde se cozinha, trata da higiene e se dorme num pequeno beliche, quase identico ao de um camião. Ainda assim há uma cozinha e uma casa de banho. No asfalto, levamos a nossa casa dentro do camião onde temos que aproveitar o mais pequeno espaço e recanto escondido para arrumar a troxa e a bucha para uma semana ou quinze dias. As casas de banho só existem nas áreas de serviço e não raras vezes é preciso pagar para utilizar, por vezes imundas, onde temos que nos abstrair do cheiro nauseabundo e deitar vista grossa para fazer as necessidades; embora aqui a culpa seja sobretudo de alguns utilizadores que quando estão em casa fazem o mesmo porque tem lá a mulher para as limpar logo a seguir.
Na bélgica porém há uma situação algo hilariante, pois nos parques das auto-estradas existem umas placas de informação onde figura um boneco a urinar para a relva. Não é a proibir, ao invés, avisam que o lugar é próprio para fazer essa necessidade. Os automobilistas param, dirigem-se à vegetação e toca a fazer chichi, eheheh. Já na Alemanha isso dá direito a multa.
Eu, muitas vezes preferia lavar a cara e os dentes no cantil da água do semi-reboque que ir às casas de banho.
Cozinhar, pois, muita gente não faz ideia, mas os camionistas não frequentam os restaurantes como seria de esperar, caso contrário não teriam dividendos do ordenado. Leva-se um camping gás, louça e alimentos conservados no frigorífico, coloca-se uma caixa em volta do camping para proteger o lume do vento e assim se fazem saboros e requintados repastos. NoVerão por volta dessas 20 horas é um cheirinho a comida nas áreas de serviço francesas. Os próprios franceses ficam com inveja, porque só lhe resta mesmo consolarem-se com o cheiro.
No Inverno tem que se improvisar tendas com a lona, ou caso a carga não complete o reboque confecciona-se aí a refeição. Nos dias de cargas e descargas ou se fez comida no dia anterior ou muitas vezes acaba-se mesmo por enfardar umas miseras sandochas.
E a saudade? Essa é imensa e na minha opinião se ouvesse um medidor de saudade os camionistas e os pescadores rebentariam com a escala, nunca é pequena a saudade, aliás nem sei se é possivel medi-la em números, porque o coração não é quantificável nem mensurável.
As saudades são dolorosas e mal arrancamos já se fazem contas para regressar, tendo em conta as distâncias, horários e as possibilidades de carga.
Talvez aqui os pescadores ganhem visto que ainda tem companhia para falar, rir, um simples olhar, os camionistas conversam ao CB e nas áreas de serviço quando se acaba o horário para pernoitar. De resto pensa-se, repensa-se e torna-se a pensar. Cria-se quase uma relação de amizade com o camião que ouve os desabafos e as confidências mais íntimas. É preciso muita resistência.
No mar quando se dorme teme-se a sua bravura e nas áreas de serviço teme-se pela segurança, pois são cada vez mais os relatos de roubos às próprias cabines. Os larápios hoje em dia já nem ligam tanto às cargas, preferem as televisões, os gps, máquinas fotográficas, rádios, portáteis. Os relatos dão conta de roubos com utilização de soníferos.
O amor? As vezes que não fazem amor com as companheiras são indesejáveis, e resta contar os dias para atracar em terra ou no parque da empresa.
São vidas cruzadas na saudade e no perigo. Sabemos que partimos vivos mas não se sabemos se alguma vez voltaremos…

Entretanto despeço-me assim:

Viúva do pescador

O grito não o ouvia o mar
É mouco
Chorava por quem não voltou
Pobre mulher viúva
Triste por tanto amar

Cedo pressentiu que não ia voltar
Naquele malfadado dia de chuva
No horizonte nem as gaivotas voavam
Ao mar só lançavam o seu cantar

A filha que nunca o pai verá
Senão nas gastas fotografias
Sabe quem lhe roubou a vida
Porém do mar não esquecerá
Rasgam-se vagas memórias,
Deveras dolorosas nalguns dias.

Triste mulher por tanto amar
Amansa agora sobre as frias areias
Tapando o rasto da sua passagem
Quer o correr do tempo ajudar

Já não tem raiva ao mar
Nem brota levadas de lágrimas
O pranto morreu nas velas do velho altar
Só ficou a saudade.

Imensa coragem,
Circula no sangue que corre nas veias
Tempos que em memórias se tornarão
Despenham-se na amena aragem
Mas o amor não esquece com a idade
Nem perdoa ao velho mar.

3 comentários:

AmSilva® disse...

É uma maneira simples de abordar a saudade, mas para terem uma ideia, uma pequeníssima ideia aliás, quando vão de férias ou quando não vêm uma pessoa que gostam durante um certo tempo, agora imaginem isso a repetir-se semana por semana, mês após mês, ano após ano Ao contrário do que seria de esperar não nos acostumamos a isso, apesar de que dizemos sempre que já estamos habituados, mas são palavras ao vento e nós, camionistas, e a familia em casa bem sabem do que falo!
Outra dura realidade é a certeza de partir, e a dúvida de voltar vivo e são!
Abraço

Anônimo disse...

Camionista e blogger é uma coincidência relativamente rara, mas sempre se vai encontrando.

Eu sou camionista e gosto de escrever, tendência muito anterior a esta actividade profissional.

Tenho vários blogs (vários, fruto daquela coisa de ter mais olhos que barriga), mas um deles, o principal, tem mesmo por título "camionista", já que foi criado num espírito de apenas semi-anonimato.

Naturalmente, também escrevo sobre o meu trabalho, embora não seja esse o principal objectivo, pois o camionista, como qualquer outro ser humano, tem muitas outras dimensões e perspectivas (nem sempre valorizadas...).

Gostei do que aqui li. Trata-se de uma escrita muito directa, , relato feito com desenvoltura, denotando experiência (da escrita, bem como da temática). A mim, já me disseram "nem parece camionista". E eu pergunto logo "porque não há-de um camionista poder esforçar-se por escrever bem? Se o consegue ou não..."

Sou testemunha de que os perigos descritos neste post são aqueles que atormentam qualquer camionista. Revejo-me no que escreveu.

Na coluna do lado, pede para ser crítico: a crítica é positiva.

Permita que lhe envie um abraço

http://sol.sapo.pt/blogs/camionista/default.aspx

Bruno disse...

Ser camionista por vezes não é fácil... As saudades de casa, os perigos da estrada, as filas de trânsito intermináveis, o cansaço e a sonolência, a falta de compreensão dos automobilistas "das caixas de fósforos" são alguns factores que por vezes fazem desejar outro estilo de vida. Mas, quando se é apaixonado pela profissão de motorista, sempre se arranja paciência para ignorar os comentários inoportunos e força para conseguir chegar ao destino com um sorriso no rosto.